sexta-feira, 6 de julho de 2007

Fragmentos de um roteiro 2

Exterior, dia.
Sara chega ao prédio para começar a trabalhar, pega a chave com a faxineira e abre a porta. Acende as luzes da sala escura, tranca a porta por dentro e começa a olhar para tudo em volta. Vai até o consultório, uma sala ampla e clara. Abre as cortinas e janelas. Olha os livros enfileirados nas estantes com interesse e aprovação. Sobre a mesa, alguns objetos chamam atenção: uma pequena banda de Moebius em metal, uma escultura mínima de um cavalo correndo. Pega a escultura e examina com interesse: é perfeita, com detalhes realistas e movimento. Procura o nome do escultor na peça. Não acha. Coloca a peça no lugar e examina a agenda. Percorre com os dedos a data. Horários marcados das nove e meia da manhã até 10 da noite. Sorri.
Olha ainda alguns cartões postais sobre a mesa. Pega um com uma foto em p&B de Paris e lê: saudades... amor. C. Deixa o cartão no lugar rapidamente, como quem se arrepende da indiscrição.
Volta à sala de espera. Algumas flores murchas no vaso de cristal caro lhe chamam a atenção. Pega o vaso com cuidado e leva até a pia do banheiro. Tira as flores, despeja a água, coloca água nova e retira as flores já murchas, procurando dar ordem e harmonia ao novo arranjo. Examina com atenção e recoloca na sala de espera. Acerta algumas almofadas e vai pra mesa da secretária. A sua mesa, de agora em diante. Senta na cadeira macia de design moderno e examina as gavetas. Quase nada dentro delas. Uns papeis em branco, algumas anotações apressadas. Muitos clips coloridos, canetas de vários modelos. Um brinco sem par. Olha para computador à sua frente. Só então nota que tem um papel colado nele e tem alguma coisa escrita no papel. Lê:
Sara,
Bem vinda. Espero que a simpatia mútua do nosso primeiro encontro continue sempre. Acho que vou gostar de trabalhar com você. Se ainda não tomou café, tem cafeteira elétrica e pó no armário da cozinha. Tem algum dinheiro na caixinha de marfim na minha mesa. Por favor, compre alguns biscoitos casadinho na confeitaria em frente ao prédio e uvas na quitanda. Gosto de beliscar durante o dia. Veja o que você gosta de comer a compre também. Vai ser um dia duro. Chego às dez. O Jader espera. Até mais. M.
Sara lê o bilhete com o rosto contraído. Fica pensativa. Retira o papel do monitor, dobra com cuidado e coloca na última gaveta. Abre as portas do que ela acreditava ser um armário e vê uma pia, cafeteira, armário de parede com copos, xícaras e outros utensílios de cozinha. Faz o café e vai até o consultório pegar o dinheiro na caixinha de marfim. Abre a caixa e vê, com surpresa, um brinco igual ao que achou dentro da gaveta da secretária. Pega o brinco e examina com mais atenção do que examinou o outro. É um brinco simples de prata, mas com design sofisticado de joalheiro. Coloca de novo na caixa, pega o dinheiro e sai para a rua. Quando volta ao consultório encontra um rapaz um pouco mais novo que ela sentado no chão do corredor, em frente à porta do consultório. Roupas meio fora de moda, óculos de lentes grossas que o deixam mais velho, cabelos desleixados. Sara pede licença a ele pra abrir a porta, mas ele não sai. O rapaz diz a ela que não adianta entrar, que a porta está fechada. Não tem ninguém ai, diz. Ela mostra a chave com um sorriso. Ele se levanta, meio a contragosto e olha pra ela com curiosidade. Pergunta: Quem te deu a chave do consultório?
Sara: Dr. Marco. Sou a nova secretária dele.
Jader: você não parece secretária de psicanalista.
Sara: como é que deve parecer uma secretária de psicanalista?
Jader: sofisticada, linda e sensual.
Sara: muito obrigada. È uma maneira bem sutil de dizer que não sou nada disso.
Jader (desconcertado): Não, você é linda e sensual.
Sara (com cara séria e professoral): mas não sou sofisticada, né?
Jader (ainda mais desconcertado): não foi isso que quis dizer.
Ela sorri, abre a porta e convida o rapaz pra entrar com um gesto.
Ele se senta no canto do sofá grande, encolhido. Ela vai até a cozinha e retira o café da cafeteira, e coloca na garrafa. Desembrulha os biscoitos e os coloca num vidro grande. Lava as uvas e leva até a geladeira, dentro do consultório.
O rapaz continua na mesma posição, encolhido no sofá.
Ela olha pra ele como quem o nota pela primeira vez e pergunta se ele quer café.
Jader: Não. Quando tomo café fico muito nervoso. Eu já sou muito nervoso.
Sara: Se quiser alguma coisa é só falar, Jader.
Jader: Como é que você sabe meu nome? (assustado)
Sara (continuando seus afazeres): sou secretária do seu médico, esqueceu?
Jader (enfático): Ele não é médico, é psicanalista.
Sara: Qual é a diferença?
Jader: Como secretária dele você deveria saber.
Sara (divertida): Sou nova na profissão. Não sei. Me explica.
Jader (sério, levanta-se a segue pelo consultório): Médico pratica a medicina. O Marco é psicanalista, analisa as pessoas do ponto de vista da psique. O Interior da mente delas. Isso não tem nada a ver com a medicina.
Sara: Pensei que tivesse relação. Mas ele é médico.
Jader: É formado em medicina, mas aqui não é médico. Médico cuida do corpo. Ele cuida da mente.
Sara: Não é tudo uma coisa só?
Jader (assustado): De onde você tirou essa idéia? Claro que não. O corpo é o que sustêm a mente. A mente é totalmente independente do corpo.
Sara: Pois a minha não funciona quando sinto dor de dentes. Acho que você está falando de alma, não de mente.
Jader: Não acredito em alma.
Sara: Não falei de alma do outro mundo, Jader. Falei dessa instância etérea que é o nosso ser.
Jader: Você é algum tipo de mística, religiosa? Não pode trabalhar aqui não. Nós, que acreditamos na psicanálise, não somos místicos.
Sara: Jung acreditava na força do pensamento mítico.
Jader (nervoso): Jung era um charlatão! Marco não conversou com você antes de te contratar? Você não serve pra trabalhar aqui, não. Não pode ficar falando essas coisas pros pacientes dele.
Sara (cautelosa): Tem razão, Jader.
Jader: Tenho razão em que?
Sara: Em dizer que não posso ficar falando com os pacientes. Isso é serviço dele. Sente aí, pegue uma revista e espere ele chegar. Não falamos mais, tá bom?
Ele para, desconsertado. Volta para a poltrona cabisbaixo e senta no mesmo canto onde estava. Olha em volta e pega uma revista. Folheia sem interesse e larga no sofá. Levanta-se e vai até ela.
Jader: Não, prefiro conversar. Já li todas essas revistas daqui. Você tem que falar pro Marco comprar revistas novas.
Sara: Vou dar o recado.
Jader: Isso não é um recado. È sua função, como secretária, zelar pelo bem estar dos pacientes.
Sara: Não. Minha função é zelar pra que tudo ande bem. Quem tem que zelar pelo bem estar do paciente é o médico.
Jader: psicanalista!
Sara (já sem paciência): É, psicanalista.
Silêncio
Jader quebra o silêncio: Desculpa. Não converso muito com as pessoas. Não sei o tom que usar numa conversa. Fui grosseiro com você.
Sara (olhando nos olhos dele): Não se preocupe.
Jader: Você leu Jung?
Sara: E também um pouco de Freud.
Jader: Você é estudante de psicologia? Quer ser psicanalista?
Sara (sorrindo): Não. Trabalhei numa livraria.
Jader (decepcionado): Sei.
Sara: Você estuda?
Jader (entusiasmado): Entrei na faculdade aos 17 anos. Sou precoce (ri). Mas não terminei o curso. Fiquei doente.
Sara: Que pena. Doença grave?
Jader (rindo alto): O que você acha que estou fazendo aqui num consultório de psicanalista?
Sara: Você mesmo disse que ele não é médico. Não cuida de doentes.
Jader (surpreendido com a resposta): Tem razão. Mas existem doenças da mente também. Sou esquizofrênico.
Sara (olhando direto pra ele): Você tem visões, essas coisas?
Jader (subitamente triste): Ás vezes ouço coisas. Mas não sempre. Mas não se preocupe comigo. Nunca ataquei ninguém. Ri.
Sara (rindo): Não estou com medo de você não, Jader. Conheço muitos malucos na minha vida. Minha família é cheia deles.
Os dois riem, descontraídos.
Jader: Me dá aquele café?
Sara: Não. Você disse que fica nervoso. Tenho medo de maluco nervoso.
Jader (rindo): Você é legal. Não vou ficar nervoso, não. Pode me dar o café. Tem leite?
Sara: Tem leite em pó. Serve?
Jader: Gosto com bastante leite em pó, pra ficar aquela papinha de leite no fundo.
Sara: Eu também. Vou preparar pra nós dois.

4 comentários:

Anônimo disse...

Em qual das três categorias você se encaixa: secretária, psicanalista ou maluca? Se esse não for um texto autobiográfico, você tem algo dos três cravado em algum lugar do âmago. Passei por aqui só para agradecer o comentário no Overblog, mas fiquei preso nas crônicas e demorei um bocado para conseguir sair. Diálogos em forma de duelo, gostei muito. Beijos.

priangonesi disse...

delícia de texto!! fiquei querendo mais....
beijo enorme

Duda Bandit disse...

que tesouro encontrei aqui, escondido em uma ilha.

beijo.

Vissungo disse...

Se eu fosse o esquizofrênico despedia o 'médico' e assumia o consultório. A empatia cheia de faíscas dele com a secretária é perfeita. Só falta chegar um paciente 'de verdade', casmurro, cabisbaixo.

Me lembrei de uma história do Aldir Blanc (que era psicanalista) dizendo que abandonou o consultório um dia e desceu para tomar cachaça com o paciente porque decsobriu que os poblemas dos dois eram iguaizinhos.
Quero mais roteiro.
Bs