sexta-feira, 22 de maio de 2009
Carta para Fernando
Vitória, 21 de setembro de 2008
Fernando,
Escrevo deitada em minha cama, sob o cobertor quente. A luz do abajur projeta uma sombra longa sobre o caderno e não enxergo muito bem o que escrevo. Eu poderia ir para o computador digitar essa carta, que você provavelmente nunca vai ler. Mas não faço isso: o aconchego da minha cama, do cobertor quente e da luz amarelada do abajur me alivia da dor que sinto desde que sai do cinema. Não falo de uma dor difusa na alma, mas de uma dor física objetiva, cabeça, tronco e membros, que a tensão provocada pelo seu filme me causou. O fato é que sai do cinema com uma dor na nuca que ainda persiste e incomoda. A dor causada pelo estado de constante tensão que o seu filme provocou em mim. Não aquela tensão do suspense, nem a da torcida pelo final feliz. É uma bem mais profunda, que se reflete fisicamente nos músculos e no estômago. É uma dor causada pelo desconforto, ou melhor, pelo desespero de ser humano e se reconhecer no espelho cristalino que você nos mostra no seu maravilhoso filme Ensaio sobre a Cegueira.
Antes de me refugiar aqui nessa cama quente vaguei várias vezes pela casa. Abri e fechei a geladeira e o armário da cozinha, não sei se procurando por algo que não estava lá ou se me certificando de que aqueles lugares ainda continham o meu alimento: um pedaço de queijo branco, uns filés de frango, cenouras, leite e pão.
Não li o livro do Saramago. Mas o pouco que já li dele foi o suficiente para reconhecer no seu filme o toque da mão do autor e os alicerces de sua construção literária. Suponho que a cidade despersonalizada, as pessoas sem passado e sem nomes e o conflito secular entre o bem e o mal são elementos do livro, criados pelo Saramago. Que bela dupla vocês me saíram! Quem somos nós nas situações limites que não apenas humanos? Não somos pátria, nem família, nem mesmo cidadãos. Somos apenas humanos. E nessa humanidade nos revelamos, para o bem ou para o mal.
E isso me espanta: como é que você consegue capturar assim a alma do escritor e a traduzir em uma escrita diversa, feita de luz, cor, cenários e rostos? E, mais intrigante ainda, como é que você consegue usar elementos tão simples, óbvios até, para compor uma escrita cinematográfica tão densa e precisa? Todas as suas escolhas no filme são basicamente óbvias: a luz branca e difusa, o esmaecimento das cores, a montagem linear, a cenografia do caos, o filme centrado na atuação dos seus atores. Tudo muito básico, quase primário em termo de linguagem. E, no entanto, você consegue juntar todos esses elementos de um jeito tão sensível, tão magistral, e fazer com eles uma obra prima, como um bom pintor misturando as cores na paleta e tirando delas, em pinceladas, um quadro único.
Agradeço a você e Saramago pelo Ensaio sobre a cegueira.
Com admiração,
Claudia
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