“Solidão é quando a gente não tem com quem falar que está sozinho” (fala do personagem Júlia)
A Via Láctea, de Lina Chamie, é um dos filmes mais intensos e perturbadores que vi ultimamente. (Pausa. Branco). Intenso e perturbador são palavras muito enfáticas e contundentes, que mais ou menos encerram a possibilidade de reflexão racional sobre o filme. Mas é uma reflexão racional o que quero fazer? O filme não me atingiu racionalmente. Ele me atingiu fisicamente: expôs meu oco, o buraco mal disfarçado da minha confusão emocional.
Vesti A Via Láctea por fora e por dentro e sai do cinema repleta das estrelas mortas que ainda teimam em brilhar nesse céu. Um céu que não começa nas nuvens, mas na epiderme da grama mais rasteira, na nossa epiderme exposta à poesia do caos humano, do caos urbano, do caos do amor, do caldo mal cozido de nossa dor de ser humano e amar e desamar, de pensar e se confundir, de lembrar e ser lembrado. E de esquecer. A Via Láctea poderia ser mais um história de amor e desencontro. Mas Lina Chamie optou pela via mais difícil e bela: a da poesia. E transformou seu filme numa obra de arte, no sentido mais amplo e contemporâneo do termo.
Para quem gosta de se ater ao fio da história, a de A Via Láctea é assim: Heitor, não por acaso um professor de literatura, e Júlia, duble de atriz e veterinária, se encontram e desencontram nos caminhos da grande cidade de São Paulo. Uma discussão violenta ao telefone faz com que Heitor saia de casa para ir ao encontro de Júlia. A história se resume na busca de Heitor por Júlia. E nessa busca ocorre também o encontro de Heitor com ele mesmo. São as lembranças de Heitor que nos contam sobre o casal e seu amor, tendo como pano de fundo e interlocutores a cidade e o trajeto entre o apartamento de Heitor e a casa de Júlia.
Mais que o cenário desse amor, a cidade de São Paulo é um personagem importante na construção do filme. São suas vias e seus remansos que determinam a interação entre os personagens. É a cidade que serve de fio condutor para essa história construída pelas lembranças e pela imaginação de Heitor. Uma história que pode mudar a qualquer hora, pois não há separação entre o que é a lembrança real, o sentimento ou a imaginação do apaixonado enciumado interpretado por um maravilhoso e maduro Marco Ricca (também produtor do filme).
A Júlia de Alice Braga (a Angélica de Cidade de Deus) a princípio parece não existir. Nós a vemos apenas com o olhar de Heitor, idealizada pelo amor de Heitor. Ela só aparece como Júlia no fim do filme. E ai percebemos a grandeza da atriz Alice Braga, que sutilmente construiu o personagem mítico que Heitor ama e o personagem real Júlia.
Toda a narrativa é construída com a matéria bruta da mente de Heitor e amalgamada com a poesia de Carlos Drummond de Andrade e Mário Chamie, entre outros. E também com a música de Gil, Satie e Mozart, misturadas à clássica abertura de desenho animado, o burburinho da cidade e a participação luxuosa e dionisíaca do Grupo Oficina. Tudo isso sobreposto às imagens poéticas da fotografia de Kátia Coelho e a primorosa direção de arte de Mara Abreu formam um palimpsesto de sentidos às vezes difícil de decifrar. Mas que toca na alma da gente com força. Um material delicado e denso que Lina Chamie e a equipe dominam com absoluta precisão e delicadeza. Um roteiro bem construído que a fotografia, o som, a direção e a atuação souberam interpretar com a maestria de quem trabalha com o coração desperto.
4 comentários:
Gostei muito, Claudia!
E ainda tive o gostinho de ter lido o esboço em primeira mão.
Abs,
Você tem a cara do IU.
A casa está portas abertas.
www.iu.art.br
Fred
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