A cerveja gelada, o vento noroeste que arrepiava a pele, a cidade deserta: qual desses fatores me alterava assim os sentidos? Nem mesmo pensava sobre isso. Só sentia que alguma coisa estava aguçada. O gosto da cerveja amarga, o efeito do vento na epiderme, o sabor marinho da casquinha de siri, tudo estava potencializado, multiplicado por cem. Era como se de uma hora para outra as coisas todas ganhassem um sentido ainda não vivido. Como se eu visse tudo pela primeira vez. Um pouco mais de pimenta: queria desfrutar ao máximo daquele súbito super-poder que me chegou no início da noite. Ardor. Mais um gole de cerveja: amargo. E tinha uns olhos, que acompanhavam cada movimento meu, liam meus lábios, acompanhavam os volteios do vento em meus cabelos. Uns olhos... Qual a cor desses olhos? Pretos, ou castanho escuros? O mundo se resumia no travo amargo da cerveja, no ardor da pimenta e naqueles olhos que eu procurava desvendar. Castanhos, inequivocamente castanhos, com alguns matizes mais escuros e outros dourados. Os olhos me diziam alguma coisa, que eu respondia, aceitava, discordava. Um diálogo de olhos. Comecei a medir a distância entre eles, depois a proporção deles em relação ao nariz. Um nariz grande. Sempre gostei de grandes narizes: dá mais força ao rosto todo. E bocas grandes, cheia de dentes, com lábios carnudos. Essa era uma boca assim, e tinha certo jeito de escultura. Não uma escultura de mármore, perfeita, mas como talhada a canivete na madeira bruta. Não era uma boca perfeita, nem bem desenhada. Parecia até mesmo sobrar no rosto. O conjunto do rosto não era bonito. Pelo menos não era o que se convenciona chamar de beleza masculina, não possuía a harmonia e a simetria que o conceito de beleza exige. Mas me prendia o olhar, como se aqueles olhos me guiassem para aquele rosto imperfeito, forte e, por isso, belo. De que falávamos? Do tempo, de música, de projetos futuros, pequenas idéias
quarta-feira, 16 de abril de 2008
Uns olhos
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